[Opinião] Ekoda-chan: uma meia-análise
A arte imitando a vida?

Disclaimer: Esse texto contém informações (spoilers) dos episódios 1 a 6 de Rinshi!! Ekodachan (depois desses, já lançaram mais dois). Caso queira ler sem ter assistido, continue por sua conta e risco.
Nessa temporada, um anime em especial chamou minha atenção: Rinshi!! Ekodachan. Fiquei bastante interessada quando vi que cada episódio teria uma produção diferente, em um estúdio diferente, com um diretor diferente, uma dubladora diferente e tal – formatos ousados tem seu charme. Aí fui procurar mais sobre e vi aquilo que mais me chamou a atenção: segundo o MyAnimeList, o mangá é possivelmente inspirado na vida real da autora, Yukari Takinami. Mas, procurando um pouco mais, algumas coisas me deixaram um pouco hesitante, entre elas, “Ekoda fica o tempo todo pelada quando está em casa” e “mangá seinen” (para homens adultos e frequentemente com conteúdo erótico, mas não pornográfico).
E agora, José? Seria Ekoda-chan uma obra super interessante baseada na vivência de alguém ou uma mulher nua e objetificada para homens? Bem, no fim das contas, a curiosidade falou bem mais alto, vocês me desculpem mas eu gosto muito quando mulheres contam suas histórias.
Talvez por estar com baixas expectativas, o primeiro episódio me impressionou demais, como nenhum outro depois foi capaz. Ekoda possui, na minha opinião, uma personalidade complexa que a torna muito real e abre um leque enorme de discussões, muito maiores que os 3 minutos semanais de episódio (são 3 minutos de Ekoda e uns 20 minutos de entrevista por episódio). Resolvi esperar metade da série sair para ter um bom material como base e aqui vou fazer um apanhado de coisas que me chamaram a atenção considerando apenas as animações, sem contar as entrevistas.
Com relação à sexualidade feminina, existem dois estereótipos muito frequentes na ficção: a “decente” e “devassa”. A primeira é a mulher “pura”, que não gosta de falar sobre “essas coisas obscenas”, que fica tímida com qualquer tipo iniciativa sexual, a “garota de bem”, esse tipo é bem frequente em animes. A segunda é o oposto, a mulher que gosta de sexo, provocativa, que seduz os homens, é perigosa e está sempre disponível, em resumo, a “garota de programa”, geralmente ela é uma espécie de vilã inclusive. Eu gosto da Ekoda porque ela não é nenhum desses. Sim, ela fica nua em casa, mas não para sensualizar, e sim para cortar gastos lavando roupa (talvez com algumas ressalvas, que serão exploradas mais abaixo). Sim, ela trabalha como hostess em bares noturnos, não porque ela é provocativa, mas porque não tem dinheiro o suficiente. Talvez aos olhos de muitos, uma degenerada, mas não por escolha e sim porque muitas vezes é isso que resta à quem vive em uma posição socialmente marginalizada. Ela sai totalmente do padrão da garota classe média que frequentemente é a protagonista nas obras.
Fica claro que ela gosta de sexo, mas não como a mulher devassa, que é quase uma máquina de oferecer prazer, e sim como uma mulher comum com desejos sexuais. Ela tem um caso com um rapaz comprometido, o Maa-kun, e, ao que fica entendido, isso começou dos dois lados como sexo casual. Contudo, no episódio 2, ela pensa que “queria que ela [a namorada dele] não existisse” e depois, pensa melhor, “não, o problema é ele”, demonstrando possuir sentimentos confusos e mistos em relação a ele.
Depois, no episódio 4, ao ver uma notícia sobre alguém que foi encontrado morto e morava sozinho, Ekoda fica aparentemente desesperada por viver sozinha e poder passar por isso numa eventual morte. Tendo 24 anos, ela é quase uma “solteirona”, já que no Japão mulheres solteiras com mais de 25 são muitas vezes vistas como quem “ficou para titia”, aí numa situação dessas ela obviamente se agarra ao boy, porque, querendo ou não, é o que sobrou. Não existe nada melhor que uma pitada de desespero para que as pessoas se agarrem a um relacionamento que não parece ter qualquer futuro. Além disso, ela provavelmente não se vê com muitas opções em ramo nenhum da vida. É um relacionamento abusivo? Eu não sei, mas às vezes parece um pouco. Maa possui uma clara estabilidade de vida que Ekoda não tem e talvez ele se aproveite um tanto da situação, seria muito mais fácil para ele do que para ela deixar a relação e parece que ele tem alguma noção disso. Muitas pessoas acabam entrando em relacionamentos abusivos em contextos parecidos com esse.
Quantas mulheres por aí não começam a sair com caras comprometidos e acabam iludidas? E, em quantos casos, não é “a outra” que acaba como a mal-vista, enquanto nada se fala do homem, que poderia ter escolhido não manter um relacionamento extra-conjugal? Não quero dizer que a mulher nunca está errada e o homem é sempre o culpado em todos os casos, mas é frequente a culpa recair toda sobre a amante, como se um caso extra-conjugal fosse feito só de uma pessoa, quando o lado que estava comprometido também escolheu participar da relação (além de ser comum a pessoa comprometida mentir sobre ser solteira). Nós acompanhamos “a outra”, mas do ponto de vista dela. A obra deixa, até agora, muito claro que o Maa só quer sexo fácil enquanto sai com outras garotas talvez “mais interessantes”, ele não tem qualquer pretensão de tirar Ekoda do papel de segunda opção, mesmo quando termina os relacionamentos “sérios”. Ekoda-chan não faz o julgamento moral da mulher que é usualmente dado pela sociedade nesse tipo de situação. Pelo contrário, o espectador entende muito melhor ela do que ele. Eu acho isso sensacional, pois passa de uma forma mais realista por algumas questões de muitas mulheres, incluindo a sexualidade, que por vezes sequer são abordadas.
De uma maneira geral, a Ekoda representa as pessoas que tentaram e falharam, as pessoas que estão presas em relacionamentos que não queriam tanto, as pessoas que vivem uma vida muito diferente do que gostariam, enfim, os “perdedores”. E isso é ótimo pois nós precisamos muito ouvir histórias sobre “perdedores”, não podemos viver só falando da colegial mediana que um dia descobre ser a heroína mais maneira do planeta. Não me entendam mal, os herois são legais mas os perdedores... ahh, eles são pura empatia. Não é nada difícil se por no lugar dela, porque todos temos um tanto de Ekoda em nós. Essa é uma obra sobre uma “perdedora”, que dá voz à ela e é feita é para rirmos com ela e não dela. E nós rimos porque, se fosse com a gente, talvez não fosse mesmo muito diferente.
Entretanto, eu vejo algumas questões nessa série. Uma delas são certos ângulos e enfoques, que objetificam o corpo da Ekoda, mesmo que num traço esquisito, e parecem ser pensados nesse leitor masculino de revista seinen. Mas é um pouco difícil tratar disso porque também vai depender um tanto de cada diretor (e eu não li o mangá para comparar), mas sinto, num geral, que há uma certa objetificação e, apesar de tudo, Ekoda é uma mulher dentro dos padrões de beleza e com um corpo aparentemente desejável.
Além disso, no episódio 4 tem uma sequência meio complicada. Ekoda em um momento fala “Dizendo 'não' quando ela quer dizer 'sim'. Bem coisa de mulher”, com imagens de várias mulheres em atos sexuais falando “não” mas supostamente querendo seguir com o sexo (ao que fica entedido, são cenas de histórias que Ekoda lê), e depois a personagem complementa a frase com “Mulheres também dizem 'sim' quando querem dizer 'não'”, seguido de uma cena em que o Maa pergunta se tudo bem ele ir embora, ao que ela responde que sim. Eu acho que entendo o ponto dessa sequência mas é, para mim, uma construção de cena, no mínimo, incômoda. Se a ideia era dizer que mulheres não são adequadamente ensinadas a se expressar nas relações amorosas ou qualquer coisa do tipo (em certos contextos dizer “não” porque foi ensinada que sexo é feio mesmo que você queira e, em outros, dizer “sim” porque vai agradar ao homem e é para isso que mulheres muitas vezes são educadas), talvez pudessem ter feito de outra forma, sem dar margem para minimização de assédio ou estupro. É muito comum nesses casos, a vítima ser posta na situação de quem “disse ‘não’ mas no fundo queria”. A minha impressão assistindo é que não era nesse sentido, mas alguém poderia interpretar assim. E deixando aqui bem claro: não é não. Se a pessoa diz “não” querendo dizer “sim”, é um problema dela, os outros devem aceitar a resposta que ela de fato disse e não ficar imaginando o que ela “quis dizer”.
O próprio fato de Ekoda ficar nua para economizar também me deixa dúvidas: isso é uma desculpa para deixar a mulher pelada ou uma crítica aos altos custos de vida? A ideia é engraçada pelo absurdo, mas ao que está apontando? É a mulher objetificada pelo machismo ou a mulher que se objetifica frente a uma sociedade machista por uma necessidade financeira? Ou os dois? No episódio 6, tem uma passagem interessante quanto a isso, na qual Ekoda diz que ficar pelada em casa é “econômico, conveniente e libertador” e depois complementa com “no entanto, isso não quer dizer… que eu não fique envergonhada do quão erótico é”. Esse episódio, inclusive, nos traz a personagem falando sobre si e suas próprias contradições como pessoa (todos nós também possuímos contradições).
Acho que a pergunta real que fica para mim é: o quão consciente sobre si a obra é? Até que ponto ela propositalmente alfineta certas questões e até que ponto se rende aos desejos do espectador, supostamente um homem? Ou será que tenta fazer ambos ao mesmo tempo, alfinetar questões enquanto atrai o espectador? A minha impressão é que, apesar de quebrar alguns clichês, ela se mantém presa a noções machistas mas… até que ponto denuncia o machismo e até que ponto o reproduz sem perceber?
É por questões como essas que eu considero esse o melhor anime da temporada. Não temos também como saber qual caminho a série vai seguir, já que cada diretor pode ir pelo caminho que quiser e aí fica difícil prever, mas considero incrível como se mantém constante o quão real a personagem de Ekoda é, às vezes é quase como se ela estivesse conversando comigo. Se chegou até aqui (ufa!!!), dê sua opinião nos comentários!
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Imagens © Rinshi!! Ekoda-chan Production Partners
Laura é redatora de notícias para a Crunchyroll.pt e graduada em Psicologia pela USP. Entrou nessa de desenhos japoneses por causa de Cavaleiros do Zodíaco e está aí até hoje. Para surtos e reclamações mais pessoais, o Twitter é @gasseruto.